sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Belle vie




Eu gostaria de me lembrar perfeitamente de como foi minha experiência de assistir “As Bicicletas de Belleville”. Pelo que vi no Google, o filme foi lançado no Brasil em abril de 2004, mês em que completei 9 anos. Fui ao cinema com minha avó e meu avô – e não consigo lembrar direito se meu primo Henrique estava também. Se ele foi, tinha 3 anos. Estou cismada de que ele foi, mas pode ser só uma memória que exista por conta dos vários filmes que vimos juntos na companhia de nossos avós. Ir ao cinema com vovó e vovô era sinônimo de vovô dormir e eu e vovó assistirmos atentamente ao filme. Quando ele roncava, nós ríamos e ela dava um tapinha nele: “Joaquim!”.

Como falei, não me lembro bem do dia em que assistimos “Belleville”, apenas de algumas coisas. A primeira, foi que achei esquisita a falta de diálogos, quase inexistentes, do filme. E lembro de ficarmos no cinema nos indagando “ué, será que não tem fala?”. Não consigo lembrar se vimos dublado ou legendado, mas talvez isso nem tenha tanta importância, já que podemos compreender o filme sem nenhuma fala, de fato. Acho que minha avó saiu da sala apreensiva quanto à minha opinião, pois a animação não é de todo infantil, ela traz até um cenário meio sombrio e situações um tanto estranhas. No entanto, eu lembro de ter adorado o filme e de isso ter surpreendido a minha avó. Desde 2004, recordo com carinho essa experiência, mesmo não lembrando de praticamente nada do filme.

Ontem, o assisti novamente em um cinema aberto na Casa Daros, local por tantos anos dirigido pela minha mãe e onde a vejo em cada canto. Depois que ela saiu de lá, ir à Daros não é uma tarefa tão simples pra mim, já que sinto muito a sua não-presença e que sinto aquele local até mesmo como uma parte de mim, e como nosso. Ver “As Bicicletas de Belleville” por lá foi uma experiência emocionante pra mim, pois tudo se embolou na minha cabeça. O lugar, o filme, a primeira vez que o assisti... “Belleville” é, acima de tudo, uma história de uma avó que tenta deixar seu melancólico neto feliz. A felicidade dele aumenta quando ganha uma bicicleta. Os anos se passam e, graças à avó, ele vira um ciclista. Um dia, pedalando no Tour de France, é capturado por mafiosos, junto a outros dois ciclistas que não aguentam o tranco da competição, assim como ele. Dessa forma, sua avó e seu cachorro vão atrás para salvá-lo dessa situação. 

SPOILER ALERT! Agora vou dar uma contada mais profunda no filme; se não quiser saber, pule para o próximo parágrafo. “Belleville” se inicia com uma transmissão de televisão onde se apresentam as “Triplettes de Belleville”, que dão o nome original do filme. Elas são um trio de meninas que fazem shows em tradicionais cabarés franceses. Em sua busca pelo neto, a avó acaba encontrando o trio, que agora é formado por elas velhinhas, e são as três que a ajudam nessa situação. Voltando ao início do filme, a transmissão de TV é interrompida e o primeiro diálogo é a avó perguntando ao neto “O filme acabou? Você não quer responder à vovó?” e o menino não responde. Ao final do filme, o próprio filme acaba dentro da televisão, que está no mesmo local, dentro da cozinha da casa da avó. A imagem ainda está se afastando quando a mesma pergunta do início é feita “O filme acabou? Você não quer responder à vovó?”. Vemos, então, o neto já velho, que se vira para onde a avó estava sentada no início, mas já não tem mais ninguém. Ele responde “Sim vovó, acabou.”. E assim termina “As Bicicletas de Belleville”. 

Quando eu saí da sala com meus avós, me lembro de alguém dizer - não sei se foi ela ou meu primo, ou até mesmo eu - que o filme era, principalmente, sobre uma avó que salvava um neto. E ela achou isso lindo. E eu também. E ontem, mais de dez anos depois, eu assisti ao filme no pátio da Casa Daros, sem a minha avó do lado. Vovó, o filme acabou. Nós duas assistindo a filmes acabou. Mas quero te dizer que você foi tão importante na minha vida como a vovó de “Belleville”. Você foi uma das pessoas que me introduziu nesse mundo de sonhos que é o cinema, mundo do qual escolhi fazer parte como espectadora e como profissional. Cada sessão que assistimos juntas ficou na minha memória para sempre, mesmo que não de forma perfeita. Afinal, o tempo passa. E, aliás, foi você, junto da minha mãe, que me fez andar de bicicleta, com e sem rodinhas. Você nunca teve um apito para que eu andasse mais rápido, como no filme, mas posso dizer que você foi um dos apitos que me fez crescer e que me fez ser quem eu sou. O meu filme, vovó, não acabou. E falta muito para acabar. Um dia te conto como foi o fim.

Marina N. Martins 


 Música-tema (maravilhosa) de "Triplettes de Belleville"