quinta-feira, 9 de março de 2017

Dia Internacional da Mulher



I - Das nossas mulheres

Eu quero falar da minha avó. Que tinha nome de flor, Margarida. Que era apaixonada pela vida, pelas pessoas, pelos livros, pelas flores, pelos filmes, pelos animais. Nordestina que chamava a madrinha de Mãe – e com quem queria se encontrar pouco tempo antes de partir. Que dançava como ninguém. Quase foi bailarina do Theatro Municipal, mas não foi, pois, assim como muitas mulheres, teve o sonho interrompido por outras pessoas. Foi casada a vida toda com o mesmo homem, aproveitando tudo de lindo nisso, mas tendo que aguentar tudo de complicado também. Produzia roupas lindas. Pariu quatro outras mulheres. E dessas três mulheres, vieram mais quatro mulheres. E uma dessas pariu mais outra. Minha avó foi guerreira até o fim de sua vida, até quando já não tinha mais forças para falar, escrever, andar, dançar, cantar, sorrir. Minha avó que voltou a dirigir, depois de ter parado desde o início do câncer, quando eu estava junto, pois precisou tirar o carro de um lugar enquanto esperávamos o vovô voltar. E logo depois disso, tirou o lenço da cabeça sem cabelos para mostrar à minha prima, na época com quatro anos, o seu “cabelinho”. Que se emocionou quando minha prima passou as mãozinhas em sua carequinha e viu quando me emocionei também. Sorrimos uma para a outra e choramos juntas. Era eu também que estava no carro na primeira vez que ela de fato dirigiu durante a doença, porque eu não nunca tive medo dela no volante, apesar de dizerem que ela era barbeira. Eu nunca achei. Ela lutou e me ensinou a lutar. Ela me passou o amor pela escrita, pelas línguas, pela fotografia, pela arte e me ensinou amor. Quero falar também das mulheres que vieram a partir da Vovó. Quero falar da minha mãe. Um exemplo de mulher guerreira, forte, ética, profissional, que transborda em amor e sentimentos. Que me carregou por nove meses, me deu à luz de parto normal, foi de maca me ver no berçário. E que me carregou tanto no colo. Hoje já não carrega porque eu já estou maior do que ela. Mas carrega, sim, sabe. Ela me carrega e carrega o peso do mundo e de si mesma. Por vezes me ensina a não ser que nem ela. Mas certas coisas eu vou fazer igual. Umas conscientemente, outras não. Umas boas, outras nem tanto. Fazer o que, mãe? Eu vim de ti. Quero falar das minhas três tias cheias de atitude que sempre me demonstraram nossa força e sempre me inspiraram em algum nível. Das minhas três primas que são como irmãs, com quem compartilho dores, amores, alegrias, vivências. Sigo exemplos e sou seguida. Quero falar da minha sobrima, tão pequena, que está tão longe, mas já mostra sua força e que não veio ao mundo para brincar. E que reconhece minha voz num áudio de celular. Quero falar da minha irmã, que já tinha 21 anos – minha atual idade – quando passei a existir e que fica em dúvida se teve alguma influência na minha carreira. Sou cineasta, ela é atriz. O que vocês acham? Ela que sempre vi nos palcos, por quem fico nervosa antes do sinal tocar três vezes. Minha irmã que corre atrás dos sonhos e é uma guerreira incansável. Quero falar da minha sobrinha, que me fez tia aos 5 anos e se parece comigo em tanta coisa. Ela que pensa em ser – adivinhem? – cineasta. Que me impressiona toda vez que a encontro e vejo que ela já é maior que eu. E que me encheu de orgulho ontem, quando a vi na Marcha do Dia Internacional da Mulher. Mas encheu de orgulho demais. Quero falar da minha avó Antonieta, que não conheci, mas tenho certeza que somos parecidas e que a sinto forte, seja dentro de mim, seja pela casa do meu pai. Quero falar da minha Tia Rita, mulher forte, guerreira, bagunceira, cheia de energia, livre, que partiu cedo, mas cedo demais. E às vezes sinto até agonia em certas fotos que me pareço aflitivamente com ela. Quero falar também de uma tataravó, escrava liberta pela Lei dos Sexagenários, e de uma bisavó, que veio da Itália para o Brasil nos anos... olha, nem sei. Também quero falar da minha terapeuta, que ouve minhas angústias e medos, muitos deles causados por apenas ser mulher. E que já falou para os meus que sou uma pessoa maravilhosa (ouvir isso da terapeuta, gente?). Quero falar das outras mulheres de minha família. Quero falar das minhas amigas, que me ajudam a ser melhor e que vi mudar também para melhor. Das que vi crescer como irmãs e que vão me acompanhar pelo resto da vida. Das que não tenho muito contato, mas tenho carinho. Das mais recentes que já amo. Quero falar das pessoas incríveis que participaram do meu projeto Corpo Cru e da equipe feminina maravilhosa do meu curta-metragem. Equipe que prova a mentira de que trabalhar com mulher é difícil. Muitas pessoas que conheci através do projeto e só enriquecem minha vida. Eu quero falar das mulheres com quem dividi as ruas do Centro da Cidade ontem, enquanto marchávamos por nossas vidas, nossos direitos e nossas liberdades. Das tantas mães que foram carregando as crianças que já crescerão respeitando e lutando. Quero falar de mulher. E vou falar de mulher, não vou me cansar, preciso falar delas, preciso falar de nós. Preciso falar o quanto somos fortes e guerreiras e o quanto aguentamos diariamente. Obrigada às mulheres da minha vida, às que já fizeram parte dela e às que ainda vão fazer. Cada uma de um jeito, vocês me ajudam a crescer.

II - Dos desejos

Que sejamos vivência e não sobrevivência.


Que nossas vidas sejam respeitadas e valorizadas. Que não existam padrões para nos pressionar, oprimir e nos fazer sentir erradas. Que nossos corpos sejam de fato nossos e que não precisemos estipular regras para que sejam respeitados. Que parem de nos obedecer e passem a nos respeitar. Que não nos violem ou violentem. Que nossos abortos não nos prendam nem nos matem. Que nossos beijos e nosso sexo não sejam regulados. Que a gente goze de nossos direitos básicos. Que nossa felicidade seja permitida quando estamos com uma pessoa pelo resto da vida ou com várias em uma só noite. Que possamos escolher o que fazer das nossas vidas. Que nossa nudez não seja castigada, objetificada, hipersexualizada. Que amemos nossos corpos, nossa assimetria, nossas barrigas grandes, pernas grossas, bumbuns estriados, peitos desiguais. Que sejamos aceitas por nós mesmas e pelos outros. Que punam os homens que nos invadem e assediam. Que parem de premiar os que nos abusam. Que parem de contratar os que nos matam, esquartejam e terminam por nos transformar em comida de cachorro. Que parem, parem, PA-REM de nos desrespeitar, rebaixar, ameaçar, assediar, abusar, estuprar, estrangular, esquartejar, que parem de nos matar. Que nos queiram vivas e nunca uma a menos, sempre uma a mais. Que sejamos vivência e não sobrevivência. Que existamos. Que não ganhemos flores, mas que elas brotem dentro de nós e se espalhem para fora. Que existamos. Que sejamos ouvidas. Que berrar por respeito, liberdade e equidade não seja mais necessário. Que existamos. Como é possível ter de implorar para existir?

III - Dos parabéns

Mas não parabéns porque esse dia te foi dado de presente. Não porque você mereça ser paparicada e colocada num pedestal por um dia, aquele em que o mundo lembra de sua existência.
Parabéns pela sua existência. Sua insistência. Sua persistência. Pela sua luta. Por você ter que acordar todo dia sabendo que ele não será fácil, mas mesmo assim enfrentar. Por você muitas vezes ter que cuidar da sua família, sua casa e do que acontece fora dela. Por carregar um ser na barriga e pari-lo. Por ser criticada quando decide que não quer isso na sua vida. Parabéns por conseguir engolir cada assédio moral e sexual que sofre. Parabéns também por vomitá-los na cara de quem merece. Parabéns por seu controle e pela falta dele também. Parabéns por ser livre ou tentar buscar sua liberdade. Parabéns também por não ser. Parabéns por amar o corpo que te olha no espelho e parabéns por não gostar dele, mas luta para aceitá-lo. Parabéns por enfrentar o medo da violência que te cerca, dos abusos que te perseguem, de ser diminuída pelo simples fato de ter vindo ao mundo uma mulher. Parabéns por ter fôlego numa sociedade que te sufoca. Parabéns por conseguir dormir, levantar da cama, estudar, trabalhar, cuidar da sua vida e muitas vezes da de outras pessoas também. Parabéns por sua força e sua incansável necessidade de prová-la.
Esses parabéns não são aplausos. Não são um "felicidades". Eles são um "obrigada". Eles são um "força".
Que nesse dia dedicado à nossa luta, a gente lembre que estamos, sim, de parabéns pelo simples e insuportavelmente difícil fato de (sobre)viver sendo mulher em um planeta que precisa ser lembrado de nossa força e nossa existência. Parabéns para nós.




Marina N. Martins