Eu gostaria de me lembrar perfeitamente de como foi
minha experiência de assistir “As Bicicletas de Belleville”. Pelo que vi no
Google, o filme foi lançado no Brasil em abril de 2004, mês em que completei 9 anos.
Fui ao cinema com minha avó e meu avô – e não consigo lembrar direito se meu
primo Henrique estava também. Se ele foi, tinha 3 anos. Estou cismada de que
ele foi, mas pode ser só uma memória que exista por conta dos vários filmes que
vimos juntos na companhia de nossos avós. Ir ao cinema com vovó e vovô era
sinônimo de vovô dormir e eu e vovó assistirmos atentamente ao filme. Quando
ele roncava, nós ríamos e ela dava um tapinha nele: “Joaquim!”.
Como falei, não me lembro bem do dia em que assistimos
“Belleville”, apenas de algumas coisas. A primeira, foi que achei
esquisita a falta de diálogos, quase inexistentes, do filme. E lembro de
ficarmos no cinema nos indagando “ué, será que não tem fala?”. Não consigo
lembrar se vimos dublado ou legendado, mas talvez isso nem tenha tanta
importância, já que podemos compreender o filme sem nenhuma fala, de fato. Acho
que minha avó saiu da sala apreensiva quanto à minha opinião, pois a animação
não é de todo infantil, ela traz até um cenário meio sombrio e situações um
tanto estranhas. No entanto, eu lembro de ter adorado o filme e de isso ter
surpreendido a minha avó. Desde 2004, recordo com carinho essa experiência,
mesmo não lembrando de praticamente nada do filme.
Ontem, o assisti novamente em um cinema aberto na Casa
Daros, local por tantos anos dirigido pela minha mãe e onde a vejo em cada
canto. Depois que ela saiu de lá, ir à Daros não é uma tarefa tão simples pra
mim, já que sinto muito a sua não-presença e que sinto aquele local até mesmo como uma
parte de mim, e como nosso. Ver “As Bicicletas de Belleville” por lá
foi uma experiência emocionante pra mim, pois tudo se embolou na minha cabeça.
O lugar, o filme, a primeira vez que o assisti... “Belleville” é, acima de
tudo, uma história de uma avó que tenta deixar seu melancólico neto feliz. A
felicidade dele aumenta quando ganha uma bicicleta. Os anos se passam e,
graças à avó, ele vira um ciclista. Um dia, pedalando no Tour de France, é
capturado por mafiosos, junto a outros dois ciclistas que não aguentam o tranco
da competição, assim como ele. Dessa forma, sua avó e seu cachorro vão atrás para salvá-lo dessa situação.
SPOILER
ALERT! Agora vou dar uma contada mais
profunda no filme; se não quiser saber, pule para o próximo parágrafo. “Belleville”
se inicia com uma transmissão de televisão onde se apresentam as “Triplettes de
Belleville”, que dão o nome original do filme. Elas são um trio de meninas que fazem shows em tradicionais cabarés franceses. Em sua busca pelo neto, a avó
acaba encontrando o trio, que agora é formado por elas velhinhas, e são as três
que a ajudam nessa situação. Voltando ao início do filme, a transmissão de TV é
interrompida e o primeiro diálogo é a avó perguntando ao neto “O filme acabou?
Você não quer responder à vovó?” e o menino não responde. Ao final do filme, o
próprio filme acaba dentro da televisão, que está no mesmo local, dentro da
cozinha da casa da avó. A imagem ainda está se afastando quando a mesma
pergunta do início é feita “O filme acabou? Você não quer responder à vovó?”.
Vemos, então, o neto já velho, que se vira para onde a avó estava sentada no
início, mas já não tem mais ninguém. Ele responde “Sim vovó, acabou.”. E assim
termina “As Bicicletas de Belleville”.
Quando eu saí da sala com meus avós, me lembro de
alguém dizer - não sei se foi ela ou meu primo, ou até mesmo eu - que o
filme era, principalmente, sobre uma avó que salvava um neto. E ela achou isso
lindo. E eu também. E ontem, mais de dez anos depois, eu assisti ao filme no
pátio da Casa Daros, sem a minha avó do lado. Vovó, o filme acabou. Nós duas
assistindo a filmes acabou. Mas quero te dizer que você foi tão importante na
minha vida como a vovó de “Belleville”. Você foi uma das pessoas que me
introduziu nesse mundo de sonhos que é o cinema, mundo do qual escolhi fazer
parte como espectadora e como profissional. Cada sessão que assistimos juntas
ficou na minha memória para sempre, mesmo que não de forma perfeita. Afinal, o
tempo passa. E, aliás, foi você, junto da minha mãe, que me fez andar de
bicicleta, com e sem rodinhas. Você nunca teve um apito para que eu andasse mais
rápido, como no filme, mas posso dizer que você foi um dos apitos que me fez
crescer e que me fez ser quem eu sou. O meu filme, vovó, não acabou. E falta
muito para acabar. Um dia te conto como foi o fim.
Marina N. Martins
Música-tema (maravilhosa) de "Triplettes de Belleville"