segunda-feira, 31 de julho de 2017

Meu avô


Meu avô nunca temeu a morte. Pelo menos ele dizia isso. Mas sempre a driblou muito bem. Há uns dez Natais que eu ouço dele “esse pode ser o meu último Natal”. Não, acho que mais de dez. Minha avó já faleceu há nove anos e eu escuto ele falando que vai morrer desde antes dela ir. Ele sempre quis ser a pessoa que não liga para morrer, mas sei o quanto sempre amou viver. E batalhou por isso. Por mais que ele falasse, eu sei que não queria partir. Mas tudo bem. Isso é só uma de suas milhões de contradições.

Sim. Meu avô é a pessoa mais contraditória que eu conheço. E apesar disso ter me tirado do sério muitas vezes, eu amo demais esse maluquinho. A nossa relação sempre foi muito próxima e intensa. Ainda criança, lembro das inúmeras vezes em que ele disse o quanto temia o dia em que eu ficasse mais velha e parasse de ter tempo para ele. “Eu sei que é normal, Marininha, é a vida. Você tem seus amigos, vai ter seus namorados. Mas não esquece do vovô”. O tempo para ele realmente diminuiu, mas eu nunca o esqueci, claro que não. Por mais difícil que fosse encontrá-lo às vezes, por conta de minha falta de tempo e de seu comportamento explosivo. Conforme eu fui crescendo, fui encontrando a maneira de lidar com as bobagens que ele dizia, chegando ao ponto de mandá-lo calar a boca. “Fica quieto agora, senão eu vou embora. Não quero ouvir sua voz pelos próximos minutos”. E ele? Respeitou. Calou a boca e não ousou falar mais merda. Pediu até desculpas: “Não vai Marininha, vovô não vai falar mais nada”. Ai dele. Ele sabe. Sabe bem.

Um dia, me criticou. Ele gosta das críticas. Mas nesse dia, disse que eu era muito radical. Agradeci pelo elogio. Sou neta de Joaquim, meu amor. Foi você mesmo quem me ensinou a ler e escrever as palavras, achou que eu não ia beber nem um pouquinho da sua fonte de radicalidade ao usá-las? Pelo menos eu não uso minha radicalidade para o bem e não pra falar bobagem, né seu Joaquim? Além de me ensinar a não ficar quieta, foi ele quem me ensinou a ler e escrever aos três anos, em passeios pelo Jardim Botânico onde levávamos um kit de giz e um pequeno quadro-negro.

Quando eu menstruei, ele demorou uns meses até me aparecer com uma carta e um buquê de flores. É que a primeira menstruação veio quando vovó estava mal, já no final de sua vida, ele não teve condições de pensar nisso. Mas não esqueceu. Pai de quatro mulheres, vô de quatro netas (e um neto!) e bisavô de uma bisneta, que viria mais tarde, ele celebrou, mesmo que alguns meses depois, minha mudança de menina para mulher.

Foi ele um dos responsáveis por me ensinar a ter menos pudor em relação ao corpo. Na minha família, ninguém tem vergonha de ficar pelado na frente de ninguém e ele, sempre mostrando a bunda em meio a reuniões de família, ajudou nisso. Talvez por nosso sangue indígena? Quem sabe.

Quando comecei a namorar, uns meses depois ele veio falar comigo “Marininha, quando quiser uma privacidade com ele, liga pro vovô. Você sabe que aqui em casa tem um quarto, pode usar. Me liga que eu saio de casa e deixo ela pra vocês. Eu não tenho frescura, não. Nem falo nada com a sua mãe. Só quero que você se cuide, porque agora ainda não ta na hora de engravidar. Sabe que quando isso acontecer, vou ficar muito feliz, mas agora vocês não precisam disso.”

Vovô sempre foi muito meu amigo, muito meu parceiro. Por mais que a gente discorde em tantas coisas. Por mais que eu já tenha passado dias sem nem querer ouvir a sua voz, porque perdia a paciência para certas colocações preconceituosas. Quanta coisa eu podia ensinar a ele, se ele ouvisse. Mas por outro lado... ah... por outro lado... Quanta coisa ele me ensinou. Se hoje eu amo escrever, e se na verdade eu sempre gostei, ele tem grande parte da responsabilidade nisso. Afinal, como já disse, foi com ele que eu conheci melhor as palavras.

Vovô me levava pra dar volta de ônibus, metrô, barca e catamarã. Não foi só uma vez que fomos até Niterói porque eu estava a fim de dar um rolê de barca. Ele me apresentou o MAC também. Eu também amava quando ele me deixava alta me colocando em sua garupa ou me fazia voar, quando me jogava para o alto na piscina. Suas mãos que, como ele diz, são como alicates, já abriram muitos potes e muitas garrafas. E também já me esquentaram para as cólicas passarem, sejam as de bebê, sejam as de mocinha. Ele sempre quis ouvir minhas histórias e me contar as dele. Eu digo a ele que, um dia, ele vai se transformar em personagem de filme meu, mesmo que ele não esteja aqui para assistir.

É muito louco isso, sabe. Muito louco isso tudo. É muito louco a gente morrer de raiva das coisas que uma pessoa fala e faz, mas ao mesmo tempo morrer de amor. É muito louco também ver, nas pessoas que a gente ama, que o tempo passa. Porque um dia elas estão ali, andando de bicicleta, passando perfume, deixando o cheiro em você quando te beijam, fazendo hidroginástica, vendo show do Gil e do Caetano. No outro, elas estão numa cama de hospital e a música que toca é um insistente tique-taque de relógio. E algumas mais gostosas que sua mãe e suas tias colocam para ele escutar.

Um dia, você tem três anos, está andando de mãos dadas pelo Jardim Botânico e aprendendo a decifrar as palavras. No outro, você as utiliza para tirar de você o que você não aguenta que fique dentro, enquanto o relógio azucrina o seu ouvido e o ouvido das pessoas que estão em camas de hospitais. E o tempo passa. Mesmo assim o tempo passa. Tem gente nascendo e gente morrendo. Tem gente fazendo aniversário. Mais um segundo, mais um ano. Você já não cabe mais na garupa e não é leve ao ponto de ser jogada para cima. Pelo contrário, você sente o peso do mundo nas costas e na garganta. E o peso do mundo machuca. Mas machuca ainda mais as pessoas em camas de hospitais. E as pessoas que você ama ficam frágeis, mais frágeis que você, ficam leves com tanto peso da vida. Elas precisam do cafuné que já tanto te deram. Você já não cabe mais esticada no sofá, com a cabeça no colo do seu avô e os pés no colo da sua avó – ela dizia que eu sempre fazia essa escolha e reclamava comigo. Eu não lembro de sempre fazer essa escolha. Aí eu revezava. Cada hora com a cabeça e os pés em um colo. No sofá, há tempos que só deita o seu avô ouvindo aquela televisão insuportavelmente alta. E ele lá, reclamando da porra da televisão brasileira que só passa merda. A vovó não está mais lá para vocês três rirem das bobagens de Zorra Total. Vovô também não está lá há um tempo, porque está sem rir numa cama de hospital. E mesmo assim o tempo passa. E as pessoas fazem anos. Ou são os anos que fazem as pessoas? Você teme pelo dia em que passará a falar delas no passado e não mais no presente. Não é à toa que presente chama presente. Viver é um presente. Ou não? Depende. Às vezes não. Não mais. E ainda assim... ainda assim, o tempo passa. Os anos caem sobre as pessoas e os ponteiros dos relógios não param. O colo que te carregou não consegue mais te segurar e você teme por nem você conseguir te segurar. Será que você cabe no seu colo?

Daqui a pouco ele vai estar longe daqui. Daqui a pouco você também. Mas em longes diferentes. E afinal, você já sabe, a gente é só. A gente tem que saber se segurar e aguentar todos os anos nas nossas costas. Todos os alívios e as dores e os alívios de quando passam as dores. Alívios que também pesam, porque, às vezes, para uma dor passar, ela precisa ir embora. De vez. Com as pessoas. O tempo passa em volta de nós e ele não sente dó, não dá nenhuma respirada. Então a gente tem que aprender a respirar. E deixar voar.

Marina N. Martins, para o aniversário de 76 anos do meu avô (dia 01/08)