I - Das nossas mulheres
Eu
quero falar da minha avó. Que tinha nome de flor, Margarida. Que era apaixonada
pela vida, pelas pessoas, pelos livros, pelas flores, pelos filmes, pelos animais.
Nordestina que chamava a madrinha de Mãe – e com quem queria se encontrar pouco
tempo antes de partir. Que dançava como ninguém. Quase foi bailarina do Theatro
Municipal, mas não foi, pois, assim como muitas mulheres, teve o sonho
interrompido por outras pessoas. Foi casada a vida toda com o mesmo homem,
aproveitando tudo de lindo nisso, mas tendo que aguentar tudo de complicado
também. Produzia roupas lindas. Pariu quatro outras mulheres. E dessas três
mulheres, vieram mais quatro mulheres. E uma dessas pariu mais outra. Minha avó
foi guerreira até o fim de sua vida, até quando já não tinha mais forças para
falar, escrever, andar, dançar, cantar, sorrir. Minha avó que voltou a dirigir,
depois de ter parado desde o início do câncer, quando eu estava junto, pois
precisou tirar o carro de um lugar enquanto esperávamos o vovô voltar. E logo
depois disso, tirou o lenço da cabeça sem cabelos para mostrar à minha prima,
na época com quatro anos, o seu “cabelinho”. Que se emocionou quando minha
prima passou as mãozinhas em sua carequinha e viu quando me emocionei também.
Sorrimos uma para a outra e choramos juntas. Era eu também que estava no carro
na primeira vez que ela de fato dirigiu durante a doença, porque eu não nunca
tive medo dela no volante, apesar de dizerem que ela era barbeira. Eu nunca
achei. Ela lutou e me ensinou a lutar. Ela me passou o amor pela escrita, pelas
línguas, pela fotografia, pela arte e me ensinou amor. Quero falar também das
mulheres que vieram a partir da Vovó. Quero falar da minha mãe. Um exemplo de
mulher guerreira, forte, ética, profissional, que transborda em amor e
sentimentos. Que me carregou por nove meses, me deu à luz de parto normal, foi
de maca me ver no berçário. E que me carregou tanto no colo. Hoje já não
carrega porque eu já estou maior do que ela. Mas carrega, sim, sabe. Ela me
carrega e carrega o peso do mundo e de si mesma. Por vezes me ensina a não ser
que nem ela. Mas certas coisas eu vou fazer igual. Umas conscientemente, outras
não. Umas boas, outras nem tanto. Fazer o que, mãe? Eu vim de ti. Quero falar das
minhas três tias cheias de atitude que sempre me demonstraram nossa força e
sempre me inspiraram em algum nível. Das minhas três primas que são como irmãs,
com quem compartilho dores, amores, alegrias, vivências. Sigo exemplos e sou
seguida. Quero falar da minha sobrima, tão pequena, que está tão longe, mas já
mostra sua força e que não veio ao mundo para brincar. E que reconhece minha
voz num áudio de celular. Quero falar da minha irmã, que já tinha 21 anos –
minha atual idade – quando passei a existir e que fica em dúvida se teve alguma
influência na minha carreira. Sou cineasta, ela é atriz. O que vocês acham? Ela
que sempre vi nos palcos, por quem fico nervosa antes do sinal tocar três
vezes. Minha irmã que corre atrás dos sonhos e é uma guerreira incansável.
Quero falar da minha sobrinha, que me fez tia aos 5 anos e se parece comigo em
tanta coisa. Ela que pensa em ser – adivinhem? – cineasta. Que me impressiona
toda vez que a encontro e vejo que ela já é maior que eu. E que me encheu de
orgulho ontem, quando a vi na Marcha do Dia Internacional da Mulher. Mas encheu
de orgulho demais. Quero falar da minha avó Antonieta, que não conheci, mas
tenho certeza que somos parecidas e que a sinto forte, seja dentro de mim, seja
pela casa do meu pai. Quero falar da minha Tia Rita, mulher forte, guerreira,
bagunceira, cheia de energia, livre, que partiu cedo, mas cedo demais. E às
vezes sinto até agonia em certas fotos que me pareço aflitivamente com ela.
Quero falar também de uma tataravó, escrava liberta pela Lei dos Sexagenários,
e de uma bisavó, que veio da Itália para o Brasil nos anos... olha, nem sei.
Também quero falar da minha terapeuta, que ouve minhas angústias e medos,
muitos deles causados por apenas ser mulher. E que já falou para os meus que
sou uma pessoa maravilhosa (ouvir isso da terapeuta, gente?). Quero falar das
outras mulheres de minha família. Quero falar das minhas amigas, que me ajudam
a ser melhor e que vi mudar também para melhor. Das que vi crescer como irmãs e
que vão me acompanhar pelo resto da vida. Das que não tenho muito contato, mas
tenho carinho. Das mais recentes que já amo. Quero falar das pessoas incríveis
que participaram do meu projeto Corpo Cru e da equipe feminina maravilhosa do
meu curta-metragem. Equipe que prova a mentira de que trabalhar com mulher é
difícil. Muitas pessoas que conheci através do projeto e só enriquecem minha
vida. Eu quero falar das mulheres com quem dividi as ruas do Centro da Cidade
ontem, enquanto marchávamos por nossas vidas, nossos direitos e nossas
liberdades. Das tantas mães que foram carregando as crianças que já crescerão
respeitando e lutando. Quero falar de mulher. E vou falar de mulher, não vou me
cansar, preciso falar delas, preciso falar de nós. Preciso falar o quanto somos
fortes e guerreiras e o quanto aguentamos diariamente. Obrigada às mulheres da
minha vida, às que já fizeram parte dela e às que ainda vão fazer. Cada uma de
um jeito, vocês me ajudam a crescer.
II - Dos desejos
Que sejamos vivência e não sobrevivência.
Que nossas vidas sejam respeitadas e valorizadas. Que não existam padrões para nos pressionar, oprimir e nos fazer sentir erradas. Que nossos corpos sejam de fato nossos e que não precisemos estipular regras para que sejam respeitados. Que parem de nos obedecer e passem a nos respeitar. Que não nos violem ou violentem. Que nossos abortos não nos prendam nem nos matem. Que nossos beijos e nosso sexo não sejam regulados. Que a gente goze de nossos direitos básicos. Que nossa felicidade seja permitida quando estamos com uma pessoa pelo resto da vida ou com várias em uma só noite. Que possamos escolher o que fazer das nossas vidas. Que nossa nudez não seja castigada, objetificada, hipersexualizada. Que amemos nossos corpos, nossa assimetria, nossas barrigas grandes, pernas grossas, bumbuns estriados, peitos desiguais. Que sejamos aceitas por nós mesmas e pelos outros. Que punam os homens que nos invadem e assediam. Que parem de premiar os que nos abusam. Que parem de contratar os que nos matam, esquartejam e terminam por nos transformar em comida de cachorro. Que parem, parem, PA-REM de nos desrespeitar, rebaixar, ameaçar, assediar, abusar, estuprar, estrangular, esquartejar, que parem de nos matar. Que nos queiram vivas e nunca uma a menos, sempre uma a mais. Que sejamos vivência e não sobrevivência. Que existamos. Que não ganhemos flores, mas que elas brotem dentro de nós e se espalhem para fora. Que existamos. Que sejamos ouvidas. Que berrar por respeito, liberdade e equidade não seja mais necessário. Que existamos. Como é possível ter de implorar para existir?
III
- Dos parabéns
Mas
não parabéns porque esse dia te foi dado de presente. Não porque você mereça
ser paparicada e colocada num pedestal por um dia, aquele em que o mundo lembra
de sua existência.
Parabéns
pela sua existência. Sua insistência. Sua persistência. Pela sua luta. Por você
ter que acordar todo dia sabendo que ele não será fácil, mas mesmo assim
enfrentar. Por você muitas vezes ter que cuidar da sua família, sua casa e do
que acontece fora dela. Por carregar um ser na barriga e pari-lo. Por ser
criticada quando decide que não quer isso na sua vida. Parabéns por conseguir
engolir cada assédio moral e sexual que sofre. Parabéns também por vomitá-los
na cara de quem merece. Parabéns por seu controle e pela falta dele também.
Parabéns por ser livre ou tentar buscar sua liberdade. Parabéns também por não
ser. Parabéns por amar o corpo que te olha no espelho e parabéns por não gostar
dele, mas luta para aceitá-lo. Parabéns por enfrentar o medo da violência que
te cerca, dos abusos que te perseguem, de ser diminuída pelo simples fato de
ter vindo ao mundo uma mulher. Parabéns por ter fôlego numa sociedade que te
sufoca. Parabéns por conseguir dormir, levantar da cama, estudar, trabalhar,
cuidar da sua vida e muitas vezes da de outras pessoas também. Parabéns por sua
força e sua incansável necessidade de prová-la.
Esses
parabéns não são aplausos. Não são um "felicidades". Eles são um
"obrigada". Eles são um "força".
Que
nesse dia dedicado à nossa luta, a gente lembre que estamos, sim, de parabéns
pelo simples e insuportavelmente difícil fato de (sobre)viver sendo mulher em
um planeta que precisa ser lembrado de nossa força e nossa existência. Parabéns
para nós.
Marina N. Martins