quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Troco um de silêncio por um de barulho

I.

- Oi, tudo bem?
- Tudo, e você?
- Tudo bem.

Mentira. Tudo péssimo. Acordei com mais uma porrada. Mas que dia é hoje? Qual o dia em que escrevo isso, em que você lê isso? Não sei. Não importa. Todo dia é uma porrada. Falamos que está tudo bem, talvez por não ter como tirar um tempo para dizer que: não. Nada vai bem. Está tudo na merda. Vivemos em um mundo destrutivo, que não se auto-destrói, mas tenta sobreviver à destruição causada pela humanidade, assim como nós. A própria humanidade. O que estamos fazendo com o mundo? O que houve com a humanidade para nos fazer viver em um pesadelo, aquele que sempre temi nas aulas de história? Eu aprendia sobre tempos sombrios e agradecia por estar em um mundo, de certa forma, melhor. Amarga ilusão. Hoje, o dia em que escrevo, o Rio amanheceu quente, azul e solar, mas só enxergo sombras e sinto um calor sufocante. Tão sufocante quanto o nó na minha garganta, que permaneceu mesmo depois das lágrimas que soltei logo ao acordar. Tão sufocante quanto os gritos também presos na garganta, que se espalham por todo o corpo. Eles saem, até saem. Mas para que? De que adianta? Mesmo que saiam, continuam me sufocando, porque são à toa. Gritamos até perder a voz, voz que é constantemente tão silenciada. Luto. Um minuto de silêncio. Luta. Um minuto de barulho.

II.

Estou sentada no chão, como de costume. Ao lado de amigas e amigos, como de costume. Como de costume, pegamos vento. As pessoas passam com seus grupos de amigas e amigos. Conversam andando, conversam paradas. Tudo normal. Tudo parece confortavelmente ou insuportavelmente natural. Eu comento com uma amiga: “olha, parece até que está tudo normal. Mas não está”. E isso vira nosso assunto. O mundo não vai bem e só piora. Nossos amigos acabaram de discutir em voz bem alta sobre tudo isso enquanto nós estávamos encolhidas, confusas e tristes demais para pensar. O mundo só piora e parece que tudo continua normal. Tem alguém se afetando? Três amigos abraçam uma pilastra. Olha aí, nem tudo é tão normal. Em meio a tantas pessoas vivendo sua rotina, eles abraçam a pilastra. Hoje é um daqueles dias para se abraçar pilastras mesmo.

III.


A nossa sociedade visualiza e não responde, até mesmo quando somos ou tentamos ser legais. E quiséramos nós que eu estivesse me referindo apenas a mensagens virtuais.

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

348



à luz



memórias nadam na minha cabeça

confusa, fico tonta

de mim, sai uma lágrima espessa

que me acalma e amedronta



dentro de meu quarto

a música penetra os ouvidos

deito-me, faço um parto

dos sentimentos que são sofridos



pensamentos fecundados

roubam-me a sanidade

sofrimentos abortados

escorrem minha liberdade



sou o parto e o aborto

daquilo que me faz ser minha

durmo, então, feito um morto

já que toda gente é sozinha

Marina N. Martins

347



perten-ser

empresto-me
pois sou só minha
dou-me a quem quiser
mas devolvo-me
não entrego-me

quem pensa que me tem
que aproveite enquanto tem
pois é finito

pertenço-me por inteira
cada parte de mim é minha
cada acerto, cada erro
cada confusão
cada espinha, cada pelo
cada imperfeição

gente não pertence à gente
a propriedade
é pura ilusão

Marina N. Martins

346



(sem título)



estica tua mão

coloque-a sobre meu peito

perfure-o, alcance meu coração

estraçalhe-o do seu jeito



esmigalhe, amasse como preferir

deixa que escorra entre os dedos

toda gosma vermelho sangue

e eu boba, fico a rir:

fica mais, ainda é cedo

Marina N. Martins

sábado, 28 de maio de 2016

Dos gritos presos

Ilustração: Layse Almada


São tantas as coisas na minha mente, que parece que as palavras me fogem. Elas me vêm em forma de prosa, de poesia, de foto, de grito, de arte. Às vezes saem, às vezes se prendem. Prendendo-se a mim, me prendem. Mas tentarei soltá-las nesse texto, elas precisam sair de mim em forma de frases feitas, não apenas de lágrimas. As lágrimas doem. As palavras e os pensamentos também. Sobreviver, viver, às vezes dói. E ultimamente anda doendo.

1.      Do Corpo Cru

Final de semana passado, uma semana atrás, eu filmava meu primeiro curta. Foi tão lindo. 14 mulheres na equipe e um homem, o iluminador. Além da equipe, 11 mulheres e um homem trans participando à frente das câmeras. Nosso documentário é fruto de um projeto fotográfico meu. Os dois têm como objetivo desobjetificar e naturalizar o corpo da mulher. As palavras que escolhi para descrever o “Corpo Cru” são: “O corpo em alma. A alma nua. Nossa nudez não será castigada”, o que já deixa a entender a que veio o projeto. A filmagem foi linda. Foi libertadora, inspiradora. A cada dia, o projeto, seja por meio das fotos ou dos filmes, me faz crescer, aprender, me empoderar como mulher. Me faz amar, lutar e, acima de tudo, não desistir da luta. As mulheres confiam em mim, se despem para o projeto, de corpo e alma. De corpo em alma. A minha equipe de mulheres confiou no projeto do curta e quis fazer com que ele ficasse lindo, como ficará.

Em nossas vidas, nós, mulheres, crescemos ouvindo coisas horríveis a respeito de nós mesmas. Crescemos em uma louca competição entre nós, aprendemos a julgar umas às outras. Escutamos que trabalhar com mulher é ruim, pois mulher é louca, histérica, desequilibrada, fala muito, não é objetiva. Tudo mentira. Eu sempre tive muitas mulheres em minha vida, seja na família, sejam amigas. Quando mais nova, sentia a necessidade de ter mais amigos homens e ficava preocupada por não ter muitos deles. Hoje, eu sei bem o porquê disso. Porque convivi, na minha escola, com jovens machistas, racistas e elitistas que desrespeitavam quem não era semelhante a eles (homem branco hetero cis rico). Eu espero que eles tenham mudado. Mas era desesperador conviver com eles. Hoje, tenho poucos homens em minha vida, todos que me respeitam e me amam. E respeitam e amam as minhas companheiras. Poucos, mas não é a quantidade que me importa. Hoje, eu agradeço por ter tantas mulheres em minha vida. E cada vez mais. Senão, seria simplesmente insuportável de sobreviver em meio a tantas atrocidades que temos de ouvir e pelas quais temos de passar diariamente. É muita dor. Sem essas muitas mulheres, eu não seria nada. Passar um final de semana trabalhando com uma equipe quase que inteira feminina (e feminista!) foi muito bom. Fiquei muito feliz. Tudo deu muito certo. Todas se respeitavam, se ajudavam, trabalhavam. A mão de uma estava sempre estendida à outra. Então, queria terminar isso agradecendo a cada uma dessas mulheres da equipe Corpo Cru. E a cada uma e cada um que participou do documentário e teve total confiança em nós. Cada uma e cada um que ajudou e contribuiu com o projeto de alguma forma. E cada mulher que já participou ou quer participar do projeto. Vocês me dão forças. Vocês me dão asas. É graças a vocês que, um dia, sei que poderei voar.


2.      Do estupro

Um choro se materializa e se amarra em minha garganta. Fica preso em nó. Um nó que não sai e rasga minha alma inteira. Arde meu peito. Me dói. O nó goteja. As gotas se espalham por meu corpo, que se amolece, se adormece, sem me deixar dormir. Respiro fundo, bebo água. É como se uma faca me penetrasse a cada horror que vejo ou leio na internet ou, pior, que ouço no dia-a-dia. As falas me cortam aos poucos. Os cortes corroem meu corpo. Às vezes, é difícil levantar. É como se não houvesse forças. Não, não é como. Não há. Mas às vezes me surgem mãos, que pegam nas minhas e me ajudam a levantar. “Vamos lutar”, dizem umas. “Eu te seguro”, dizem outras. Delas, saem braços que me envolvem. Saem corpos, saem rostos com bocas que tem outras palavras para te dizer. Palavras que costuram os cortes recebidos, fazem com que se transformem em cicatrizes e estão lá para ajudar a curá-las. Sou cheia de cicatrizes. Minhas irmãs também são. A cada dia, uma nova facada em nossos corpos, vulneráveis, violados, violentados. A cada dia, uma nova sutura, uma nova gaze que tenta nos encher de curativos. Enquanto uns te fazem vomitar, outros estão lá para segurar o seu cabelo. Enquanto aqueles te baixam a pressão, esses te passam água no rosto. Enquanto aqueles passam suas mãos sem que você permita, esses a estendem para que você não desista.

Rio de Janeiro, maio de 2016. Uma menina é estuprada por mais de 30 homens. Brasil, 2016. Uma mulher é estuprada a cada onze minutos. Uma em cada quatro mulheres será estuprada até o fim de sua vida. Essa mulher pode ser eu, pode ser você, pode ser ela. Uma delas é cada uma de nós. Tentamos imaginar como deve estar a menina, vítima de um estupro coletivo. Queremos abraçá-la e dizer, bem baixinho, “não é culpa sua; estamos aqui”. Tentamos imaginar, mas nos dói, nos dói tanto. Não conseguimos. Não queremos. Apenas torcemos e lutamos para que ela consiga seguir a vida dela. Nós vamos às ruas, nós gritamos. Nos fazemos ser vistas. Vocês precisam nos ver. Abrir os olhos e nos ver. Olhar nos nossos. Pedir perdão por cada gesto diário de vocês que contribui a um estupro. Vocês acham que o estupro é um caso extremo de misoginia, mas vocês não percebem como contribuem com ele. Vocês não têm empatia. Vocês fogem de uma generalização, pois não querem admitir que, um dia, já contribuíram para casos extremos de misoginia. Cada piadinha que soltaram, uma mulher estuprada. Cada foto ou vídeo que compartilharam, uma mulher assassinada. Vocês acham que não provocaram isso, mas quero que saibam: enquanto vocês riem do “machismo bem humorado” de vocês, uma mulher está sendo violentada. Tem seu corpo, sua vagina, seu ânus, sua boca penetrada por algo pelo qual ela não pediu, ela não escolheu. Mas fiquem tranquilos, isso não acontece apenas quando vocês são machistas. Não. Enquanto vocês estão dormindo, comendo, tomando banho, acordando, falando, há uma mulher sendo espancada, outra sendo abusada, outra assediada, outra estuprada e outra assassinada. (Alguns de) vocês se compadecem em casos extremos. Vocês pensam: “poderia ser minha filha”, “poderia ser minha mãe”. Vocês já pensaram que poderia ser um ser humano? Aliás, que é um ser humano? Já pararam para pensar que estamos tratando de um ser humano? Ser humano esse que você, nessa sociedade machista e patriarcal, já destratou. Com seu buylling. Suas piadinhas. Suas brincadeiras entre amigos. As fotos e vídeos que vocês trocam em grupos de whatsapp. Suas chantagens emocionais em troca de beijos e sexo. Suas “inconveniências”. Seus toques não bem-vindos.

Se vocês se assustam com uma menina sendo violentada por mais de 30 homens, tenham a consciência da responsabilidade de vocês nessa sociedade que naturaliza o estupro. Uma sociedade com propagandas que objetificam o corpo da mulher. Com músicas que objetificam o corpo da mulher. Com mídias e objetos culturais que naturalizam atrocidades como estupro e pedofilia. Que amenizam isso usando eufemismos para descrever tais situações. Uma sociedade que apoia o opressor e desdenha do oprimido. Vocês nunca escutaram: “nunca estuprem uma mulher”. Nós sempre escutamos “não aceite bebida de estranhos”, “não converse com estranhos”, “não use roupas tão curtas”, “não ande sozinha a essa hora”, “não vá sozinha por ali”. Todas as frases poderiam ser substituídas por “cuidado para não ser estuprada”. Porque vivemos em uma sociedade que ensina à mulher a evitar um estupro, mas não ensina aos homens a não estuprar. “Ah, mas isso é óbvio”. Ah, é? Vamos repetir. Uma em cada quatro mulheres será estuprada até o fim de sua vida. Uma mulher é estuprada a cada onze minutos no Brasil. Cada vez que vocês expõem uma mulher, que ironizam sua luta ou sua dor, que fazem piadas machistas e que não chamam a atenção dos amigos misóginos de vocês, vocês contribuem para essa realidade. A cada sorriso que vocês pedem para uma mulher depois de ofendê-la, é como se a obrigassem a gemer quando ela não está sentindo prazer, mas vocês sim. Vocês contribuem, pois ajudam a naturalizar a inferiorização e objetificação da mulher. Acho que não preciso dizer porque esses termos se relacionam com o estupro. Parem de nos machucar, por favor. Parem. Parem. Parem. É muito doloroso ver vocês desdenhando da nossa luta ou dando menos importância a ela. Nossa luta é o que nos faz acordar e colocar os pés em uma rua que não nos respeita. Em nossas faculdades e locais de trabalho que nos oprimem. Muitas vezes, até mesmo em nossas próprias casas. É de mãos dadas que nós nos reerguemos a cada queda. É de mãos dadas que sobreviveremos a cada dia.

3.      Do mundo que está ficando chato

- O mundo está ficando chato – disse o opressor.
- Está ficando? Ele sempre foi. Nós só estamos tentando transformá-lo em menos insuportável para que possamos, ao menos, sobreviver – respondeu o(a) orpimido(a).

Marina N. Martins