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Ilustração: Layse Almada |
São
tantas as coisas na minha mente, que parece que as palavras me fogem. Elas me
vêm em forma de prosa, de poesia, de foto, de grito, de arte. Às vezes saem, às
vezes se prendem. Prendendo-se a mim, me prendem. Mas tentarei soltá-las nesse
texto, elas precisam sair de mim em forma de frases feitas, não apenas de
lágrimas. As lágrimas doem. As palavras e os pensamentos também. Sobreviver,
viver, às vezes dói. E ultimamente anda doendo.
1.
Do Corpo Cru
Final
de semana passado, uma semana atrás, eu filmava meu primeiro curta. Foi tão
lindo. 14 mulheres na equipe e um homem, o iluminador. Além da equipe, 11
mulheres e um homem trans participando à frente das câmeras. Nosso documentário
é fruto de um projeto fotográfico meu. Os dois têm como objetivo desobjetificar
e naturalizar o corpo da mulher. As palavras que escolhi para descrever o “Corpo
Cru” são: “O corpo em alma. A alma nua. Nossa nudez não será castigada”, o que
já deixa a entender a que veio o projeto. A filmagem foi linda. Foi libertadora,
inspiradora. A cada dia, o projeto, seja por meio das fotos ou dos filmes, me
faz crescer, aprender, me empoderar como mulher. Me faz amar, lutar e, acima de
tudo, não desistir da luta. As mulheres confiam em mim, se despem para o
projeto, de corpo e alma. De corpo em alma. A minha equipe de mulheres confiou
no projeto do curta e quis fazer com que ele ficasse lindo, como ficará.
Em
nossas vidas, nós, mulheres, crescemos ouvindo coisas horríveis a respeito de
nós mesmas. Crescemos em uma louca competição entre nós, aprendemos a julgar
umas às outras. Escutamos que trabalhar com mulher é ruim, pois mulher é louca,
histérica, desequilibrada, fala muito, não é objetiva. Tudo mentira. Eu sempre
tive muitas mulheres em minha vida, seja na família, sejam amigas. Quando mais
nova, sentia a necessidade de ter mais amigos homens e ficava preocupada por
não ter muitos deles. Hoje, eu sei bem o porquê disso. Porque convivi, na minha
escola, com jovens machistas, racistas e elitistas que desrespeitavam quem não
era semelhante a eles (homem branco hetero cis rico). Eu espero que eles tenham
mudado. Mas era desesperador conviver com eles. Hoje, tenho poucos homens em
minha vida, todos que me respeitam e me amam. E respeitam e amam as minhas
companheiras. Poucos, mas não é a quantidade que me importa. Hoje, eu agradeço
por ter tantas mulheres em minha vida. E cada vez mais. Senão, seria
simplesmente insuportável de sobreviver em meio a tantas atrocidades que temos
de ouvir e pelas quais temos de passar diariamente. É muita dor. Sem essas muitas
mulheres, eu não seria nada. Passar um final de semana trabalhando com uma
equipe quase que inteira feminina (e feminista!) foi muito bom. Fiquei muito
feliz. Tudo deu muito certo. Todas se respeitavam, se ajudavam, trabalhavam. A mão
de uma estava sempre estendida à outra. Então, queria terminar isso agradecendo
a cada uma dessas mulheres da equipe Corpo Cru. E a cada uma e cada um que
participou do documentário e teve total confiança em nós. Cada uma e cada um
que ajudou e contribuiu com o projeto de alguma forma. E cada mulher que já
participou ou quer participar do projeto. Vocês me dão forças. Vocês me dão
asas. É graças a vocês que, um dia, sei que poderei voar.
2.
Do estupro
Um
choro se materializa e se amarra em minha garganta. Fica preso em nó. Um nó que
não sai e rasga minha alma inteira. Arde meu peito. Me dói. O nó goteja. As gotas
se espalham por meu corpo, que se amolece, se adormece, sem me deixar dormir. Respiro
fundo, bebo água. É como se uma faca me penetrasse a cada horror que vejo ou
leio na internet ou, pior, que ouço no dia-a-dia. As falas me cortam aos
poucos. Os cortes corroem meu corpo. Às vezes, é difícil levantar. É como se
não houvesse forças. Não, não é como. Não há. Mas às vezes me surgem mãos, que
pegam nas minhas e me ajudam a levantar. “Vamos lutar”, dizem umas. “Eu te
seguro”, dizem outras. Delas, saem braços que me envolvem. Saem corpos, saem
rostos com bocas que tem outras palavras para te dizer. Palavras que costuram
os cortes recebidos, fazem com que se transformem em cicatrizes e estão lá para
ajudar a curá-las. Sou cheia de cicatrizes. Minhas irmãs também são. A cada
dia, uma nova facada em nossos corpos, vulneráveis, violados, violentados. A
cada dia, uma nova sutura, uma nova gaze que tenta nos encher de curativos. Enquanto
uns te fazem vomitar, outros estão lá para segurar o seu cabelo. Enquanto aqueles
te baixam a pressão, esses te passam água no rosto. Enquanto aqueles passam
suas mãos sem que você permita, esses a estendem para que você não desista.
Rio
de Janeiro, maio de 2016. Uma menina é estuprada por mais de 30 homens. Brasil,
2016. Uma mulher é estuprada a cada onze minutos. Uma em cada quatro mulheres
será estuprada até o fim de sua vida. Essa mulher pode ser eu, pode ser você,
pode ser ela. Uma delas é cada uma de nós. Tentamos imaginar como deve estar a
menina, vítima de um estupro coletivo. Queremos abraçá-la e dizer, bem
baixinho, “não é culpa sua; estamos aqui”. Tentamos imaginar, mas nos dói, nos
dói tanto. Não conseguimos. Não queremos. Apenas torcemos e lutamos para que
ela consiga seguir a vida dela. Nós vamos às ruas, nós gritamos. Nos fazemos
ser vistas. Vocês precisam nos ver. Abrir os olhos e nos ver. Olhar nos nossos.
Pedir perdão por cada gesto diário de vocês que contribui a um estupro. Vocês acham
que o estupro é um caso extremo de misoginia, mas vocês não percebem como
contribuem com ele. Vocês não têm empatia. Vocês fogem de uma generalização,
pois não querem admitir que, um dia, já contribuíram para casos extremos de
misoginia. Cada piadinha que soltaram, uma mulher estuprada. Cada foto ou vídeo
que compartilharam, uma mulher assassinada. Vocês acham que não provocaram
isso, mas quero que saibam: enquanto vocês riem do “machismo bem humorado” de
vocês, uma mulher está sendo violentada. Tem seu corpo, sua vagina, seu ânus,
sua boca penetrada por algo pelo qual ela não pediu, ela não escolheu. Mas fiquem
tranquilos, isso não acontece apenas quando vocês são machistas. Não. Enquanto vocês
estão dormindo, comendo, tomando banho, acordando, falando, há uma mulher sendo
espancada, outra sendo abusada, outra assediada, outra estuprada e outra
assassinada. (Alguns de) vocês se compadecem em casos extremos. Vocês pensam: “poderia
ser minha filha”, “poderia ser minha mãe”. Vocês já pensaram que poderia ser um
ser humano? Aliás, que é um ser humano? Já pararam para pensar que estamos
tratando de um ser humano? Ser humano esse que você, nessa sociedade machista e
patriarcal, já destratou. Com seu buylling. Suas piadinhas. Suas brincadeiras
entre amigos. As fotos e vídeos que vocês trocam em grupos de whatsapp. Suas
chantagens emocionais em troca de beijos e sexo. Suas “inconveniências”. Seus
toques não bem-vindos.
Se
vocês se assustam com uma menina sendo violentada por mais de 30 homens, tenham
a consciência da responsabilidade de vocês nessa sociedade que naturaliza o
estupro. Uma sociedade com propagandas que objetificam o corpo da mulher. Com músicas
que objetificam o corpo da mulher. Com mídias e objetos culturais que
naturalizam atrocidades como estupro e pedofilia. Que amenizam isso usando
eufemismos para descrever tais situações. Uma sociedade que apoia o opressor e
desdenha do oprimido. Vocês nunca escutaram: “nunca estuprem uma mulher”. Nós
sempre escutamos “não aceite bebida de estranhos”, “não converse com estranhos”,
“não use roupas tão curtas”, “não ande sozinha a essa hora”, “não vá sozinha
por ali”. Todas as frases poderiam ser substituídas por “cuidado para não ser
estuprada”. Porque vivemos em uma sociedade que ensina à mulher a evitar um
estupro, mas não ensina aos homens a não estuprar. “Ah, mas isso é óbvio”. Ah,
é? Vamos repetir. Uma em cada quatro mulheres será estuprada até o fim de sua
vida. Uma mulher é estuprada a cada onze minutos no Brasil. Cada vez que vocês
expõem uma mulher, que ironizam sua luta ou sua dor, que fazem piadas machistas
e que não chamam a atenção dos amigos misóginos de vocês, vocês contribuem para
essa realidade. A cada sorriso que vocês pedem para uma mulher depois de
ofendê-la, é como se a obrigassem a gemer quando ela não está sentindo prazer,
mas vocês sim. Vocês contribuem, pois ajudam a naturalizar a inferiorização e
objetificação da mulher. Acho que não preciso dizer porque esses termos se
relacionam com o estupro. Parem de nos machucar, por favor. Parem. Parem. Parem.
É muito doloroso ver vocês desdenhando da nossa luta ou dando menos importância
a ela. Nossa luta é o que nos faz acordar e colocar os pés em uma rua que não
nos respeita. Em nossas faculdades e locais de trabalho que nos oprimem. Muitas
vezes, até mesmo em nossas próprias casas. É de mãos dadas que nós nos
reerguemos a cada queda. É de mãos dadas que sobreviveremos a cada dia.
3.
Do mundo que está ficando chato
-
O mundo está ficando chato – disse o opressor.
-
Está ficando? Ele sempre foi. Nós só estamos tentando transformá-lo em menos
insuportável para que possamos, ao menos, sobreviver – respondeu o(a)
orpimido(a).
Marina N. Martins