quarta-feira, 26 de abril de 2017

O corpo

     
Ilustração: James R. Eads


Ontem, durante um encontro com um grupo do qual faço parte, fizemos diversos exercícios corporais. Mais uma vez, fiquei pensando sobre as definições do que é um corpo. É um assunto que está sempre na minha cabeça, já que eu estudo a questão, seja em discussões de gênero, raça, seja na arte, sejam nos dois ao mesmo tempo. E no meu projeto fotográfico chamado Corpo Cru, eu peço para quem participa definir o que significa “Corpo” e “Cru” ou “Corpo Cru”, então essas definições volta e meia martelam em minha mente. Ontem, algumas coisas passaram por ela. Primeiro, eu queria dizer que acho CORPO uma palavra linda. COR PO.

Depois, pensei que o meu corpo só está cru quando estou debaixo do chuveiro de olhos fechados com a água escorrendo e percorrendo-o. Porque quando eu abro o olho e olho para os pelos na perna que me incomodam, para a barriga que poderia estar menor, as espinhas que são feias, os peitos que aff, o esmalte descascado, bla bla bla, ele já não está mais cru. Eu boto mais a mente do que sinto o corpo. Então eu só me sinto crua quando apenas a água encosta nele, pois a água apenas encosta. Ela não olha, ela não fala, ela não julga. E ainda faz bem. O meu corpo no banho é meu corpo mais cru. Não tem roupa, não tem olhar, não tem adjetivos. Ele também é um pouco cru quando eu danço, mas sem ligar para quem está olhando e o que estão achando. Quando eu só danço, fecho os olhos, solto tudo, sejam as partes dele, seja toda a energia que está armazenada ali naquele território.

Então, pensei no corpo como contradição. Outro dia, escrevi um texto falando sobre como o meu corpo não é meu. Mas ao mesmo tempo, ele é muito meu, só meu, meu todinho. O corpo são várias contradições, que vão desde o fato de, por exemplo, a nudez feminina ser bem vista quando faz parte de um padrão e é colocada à venda, enquanto que a nudez natural é proibida, até tudo o que a nossa boca fala e o corpo faz diferente. Dizer que está tudo bem, mas a mão tremer, dizer que está bem disposta, mas bocejar, dizer que não quer comer, mas salivar, dizer que não liga, mas não para de olhar, dizer que odeia quando quer abraçar, e por aí vai.

Por fim, me veio novamente a ideia do corpo como tempo. Essa definição chegou a mim no dia em que uma conhecida da minha idade faleceu. Ela queria fazer parte do meu projeto, mas não deu. Não tivemos tempo. (Escrevi sobre isso também) E ontem eu estava naquele encontro, após exaustivos e deliciosos exercícios corporais, pensando na efemeridade de nós mesmos. Sobre o quão somos bobos por não nos darmos conta de que somos todos temporários. Podemos definir o corpo de qualquer forma, mas ele é, talvez acima e antes de tudo, tempo. Ele carrega o tempo que vivemos e, com o tempo, vai acabar. Vai sumir. Aí a ligação da nossa cabeça com nosso corpo faz com que a gente se preocupe muito com o que os outros vão achar de como ele está agindo. Nos bloqueamos de nossa própria liberdade e propriedade, sim, propriedade nossa sobre o nosso corpo. Porque nenhum ser humano pertence a nenhum outro ser humano, mas o nosso corpo pertence a nós. Ele pode estar pertencendo temporariamente a alguém com quem eu decida compartilhá-lo, mas isso passa, é bem mais efêmero do que a efemeridade de nós mesmos. Eu que sempre continuarei com ele e nele.

Esquecemos que corpo é tempo, então andamos encarando o chão, nos censuramos de nossa nudez, bloqueamos beijos, abraços e até palavras. A mente sabota o que nosso corpo é quando cru: livre. Por exemplo, a minha mente muitas vezes faz com que meu corpo doa, trave e me machuque, porque a gente se bloqueia de sentir. E do sentir, faz parte o sorrir, o chorar, o falar, o gritar. Transformamos nossos corpos em gaiolas de nós mesmos por medo ou vergonha do que os outros corpos pensantes acharão de nós. E pra que isso tudo?

Então eu vejo uma pessoa com câncer, vejo o quanto o corpo dela começa a limitá-la, porém não por desejo dela, vejo o tempo pesando em seu corpo, seja tudo o que já passou por ele ou o curto tempo que há pela frente. Vejo que esse corpo vai sumir, como todo corpo de tudo o vive. E cada não toque, não beijo, não abraço, não palavra, não lágrima, não sorriso, não dança, não nudez, não transa, não prazer, não liberdade, por puro bloqueio, é um não-uso desse corpo-tempo. Um desperdício. E eu fico aqui escrevendo, escrevendo, mas de nada adianta se eu só escrever. Porque vomitar as palavras faz bem para minha mente e meu corpo, mas às vezes eu só quero sentir outro(s) corpo(s) perto de mim. Soltar e compartilhar o meu com o mundo. Mas não sinto. Eu não faço. Eu me paro. Me censuro. Sinto vergonha. Sinto medo. Só que um dia isso tudo passa, sabe. E eu não vou ter feito muita coisa. E vou me arrepender de todo tempo que perdi ao usar mais mente do que corpo. Eu quero poder chegar perto do meu fim, sentindo todo tempo gasto pesar sobre meu corpo, e não lamentando sobre o que foi perdido por pura bobagem. Porque um dia o corpo morre. Um dia ele some. Um dia, nosso corpo acaba.

Marina N. Martins

sábado, 22 de abril de 2017

Cebola

(encontrei a imagem no pinterest)

Adormeceu quando o dia já raiava e amanheceu quando já estava pela metade. Espreguiçou-se e permaneceu uns minutinhos em sua preguiça. Levantou, foi até a cozinha e colocou uma música para acompanhá-la ao fazer o almoço. Colocou a água para ferver, separou o macarrão, o alho, a cebola, os ingredientes do molho de tomate. A música tocava e a cabeça pulsava como o coração em ritmo intenso, embalados pelas músicas. Muita coisa e muita gente fazia com que eles pulsassem em (des)harmonia. Muita coisa, muita gente, muita coisa, pouca gente, muita coisa, essa gente. Como de costume, começou a chorar. As lágrimas escorriam de seu rosto enquanto preparava tudo. Nostalgia, saudade, ansiedade, incerteza, sentimentos. Tanta coisa, tanta gente, tanta coisa, pouca gente, tanta coisaaaaaaaaaaaaa –

Nheeeeé

Alguém abriu a porta da cozinha.

Recompõe-se. Engole o choro. Funga. Passa a mão com cheiro de alho pelo nariz e embaixo dos olhos. Respira num sorriso. Vira-se.

- Oi!
- Oi... ei! Que houve, você ta chorando?
- Nãaao, não. É só a cebola.

É só a cebola.

Marina N. Martins

segunda-feira, 10 de abril de 2017

É o meu corpo, mas não é meu

Ilustração: Layse Almada

O meu corpo não é meu. Só do fato de eu precisar pensar várias vezes o quão sou dona do meu corpo, já mostra que isso não é tão natural quanto deveria ser. E isso é tão louco. A gente banaliza o anormal e se choca com o natural. Eu não pertenço a ninguém, mas a sociedade ainda não entendeu isso. Então entender que eu sou minha é uma batalha. Cada olhar e cada fala que escuto sobre as minhas “imperfeições” ou o que eu posso fazer para “melhorá-las” ou escondê-las, eu me sinto menos minha. Cada olhar de julgamento me tira um pouco de mim. As estatísticas de violência sexual e doméstica contra mulheres mostram que muita gente ainda faz o que quer do corpo das outras. Se meu corpo fosse meu, eu não arrancaria meus pelos quando eles ficam grandes. Ou pelo menos não me incomodaria com os olhares que eles recebem. Eu não ia me submeter à dor de uma cera arrancando meus pelos, ou de uma pinça puxando-os e por vezes machucando minha pele. Não ia me submeter a uma cama numa sala de depilação, em que fico literalmente aberta e sentindo dor. E o pior, não ia me sentir melhor e mais bonita após a dor dos pelos arrancados. Eu não ia me preocupar com a barriga um pouco maior, os cinco quilos que ganhei em um ano, as espinhas que apareceram em mim depois que eu abdiquei dos hormônios da pílula anticoncepcional, as celulites que resolveram aparecer, umas estrias que aumentaram, os meus peitos não seriam um eterno problema para mim. Se meu corpo fosse meu, o espelho seria um reflexo de um sorriso, não um momento de procura do que poderia ser melhor. Eu não me preocuparia com as opiniões diárias das pessoas sobre o que eu poderia fazer com meu corpo. “Passa uma base”, “toma esse remédio”, “troca de roupa”, “por que cortou o cabelo?”, “ta peludinha, heim?”.

Agora, a minha nudez, essa é só minha. Porque minha nudez só é dos outros quando ela se enquadra no que eles gostam. Minha nudez é dos outros quando não traz marcas, gorduras ou pelos. Quando o que é mostrado agrada. Mas quando quero tirar a camisa por calor, minha nudez é minha. Minha nudez não é minha quando vende. Mas aquela nudez que recebe a água do chuveiro, essa só pode ser minha. E ai de mim se quero mostrá-la. E o meu corpo é tão não meu, que eu nem tenho coragem de mostrar essa nudez. Porque minha nudez é tão minha, que quando é para os outros, fico achando que é errada, que podia ser melhor, que não vão aceitá-la. Ela nunca me deixou satisfeita.

Quando ando na rua e ouço comentários, sinto olhares e às vezes até toques, meu corpo não é meu. Porque ele só é meu quando eu deixo tocar, quando eu gosto do olhar, quando eu quero escutar o que têm a dizer sobre ele. Meu corpo, minhas regras? Talvez no dia em que eu parar de tentar me adequar às normas sociais e ao que elas esperam de mim. Por enquanto, eu dito algumas regras e cumpro algumas outras. Minha regra é um corpo livre (um corpo cru, em homenagem ao meu projeto). Um corpo feliz que signifique liberdade e não opressão. Não é só sobre quem vai olhá-lo e tocá-lo. É sobre a minha relação com ele. É sobre diminuir a minha exigência em relação ao que eu enxergo no espelho. Meu corpo não é meu, mas ai de você querer arrancá-lo de mim. Posso até sair de mim, mas do meu corpo, desse eu não saio.

Marina N. Martins

Radical

"Linguagem Sexista"
(achei a imagem no Pinterest)

E aí vocês vêm e me dizem que eu sou muito radical. Dizem com uma serenidade no olhar e uma cara de pau que só conheço em homens, mas calma, a culpa não é de vocês. A culpa é de toda uma estrutura que deixa vocês completamente serenos e donos de si, até quando o assunto não é sobre vocês. Vocês podem e devem ser seguros, confiantes, e dizerem o que quiserem, quando quiserem. Não é isso? Sempre foi isso. A culpa é de um sistema que não dá limite pra vocês, pra toda essa significância que lhes foi dada e que vocês mesmos se dão; que sempre vai dar razão ao que vocês disserem e fizerem. Então por que guardar para si, se o que estão falando é certo, não é mesmo? Quando se tem todo o privilégio, é realmente muito complicado se calar para ouvir quem sofre na pele e jogar tudo o que é dito em um discurso de que “vocês feministas odeiam os homens”. Em vez de falar uma palhaçada dessas, por que não tentar entender de onde vêm isso que vocês interpretam como “ódio”, pelo fato de que vocês simplesmente não conseguem não serem protagonistas de algo nessa sociedade onde vocês protagonizam tudo o tempo inteiro? Calma, calma. Mais uma vez, não se sintam culpados por isso. Vou ter que ficar repetindo isso só para vocês pararem de achar que o lance é pessoal. Tem que fazer igual criança. Repetir, repetir, repetir... quem sabe um dia minha voz acaba e vocês entendem, né? Mas bom. Em vez de achar que o grande problema do feminismo é o “ódio aos homens”, vocês podiam fazer o exercício da escuta. Se não conhecem, não me impressiona, já que quem foi ensinada a escutar sempre fomos nós. Eu posso explicar o que eu entendo como machismo estrutural, mas só vou explicar se vocês estiverem dispostos a se calar. E não precisam ler teorias feministas, textos e mais textos, apenas se vocês escutassem já bastaria. Se vocês parassem para nos escutar, e mais, SE escutar, vocês entenderiam. Entenderiam que a questão é es-tru-tu-ral e não pessoal. Eu tenho todo o tempo do mundo de explicar, se quiserem entender. Mas se não quiserem entender, nem me perguntem, porque o meu tempo é precioso para me esgoelar para alguém que apenas finge o interesse, quando na verdade só quer falar. Continuar falando. Sempre e sempre. Não vou dizer que não é difícil se calar; é sim. A gente tem que fazer isso a vida toda, então eu digo com propriedade. Se calar é ruim. Mas às vezes não custa nada. Mais do que isso, às vezes é necessário. E mais, às vezes é fundamental. Então, caros homens, não adianta querer ser chamado de feminista se você não entende o movimento, não entende que feminista não é tudo igual, qual é o “inimigo maior” do feminismo, o que é privilégio, o que é lugar de fala, não assume suas atitudes machistas e não percebe tudo o que você fala e faz para que a misoginia se mantenha. Alguns não conseguem nem dizer que apoiam o feminismo, porque na verdade não entendem nada dele e parecem que não querem entender, quem dirá SER feminista. Calem-se e entendam: essa luta não é contra vocês. E muito menos sobre vocês. Quem chama uma mulher de louca quando ela se sente ofendida, nunca viu um homem se sentir ofendido pelo movimento feminista. E vem me dizer que minha luta é radical? Radical é teu machismo, parceiro. Desde o que ri da piadinha boba até o que estupra. Cansei de ouvir sem ser escutada.

Marina N. Martins